segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Espírito do Guerreiro

( Para o nosso eterno amigo e capitão do Chora Rita, Valcir (In Memorian), que teve uma praça inaugurada em sua homenagem na cidade de Pains no dia 29/12/12)

A Professora da Escola Municipal da cidade de Pains entra na sala de aula, a agitação dos alunos ampliava o calor que fazia naquele verão do ano de 2092, lentamente a conversa dos alunos cessa quando a professora começa a falar :
- Eu quero que vocês conheçam a história da nossa cidade, por isso vocês farão um trabalho para mim. Cada um escolherá um local da cidade e explicará a história desse lugar.
Alguns alunos se sentiram motivados pela tarefa, outros se aborreceram e consideraram aquela tarefa chatíssima. Um dos alunos que mal prestou atenção na professora e que reclamou muito ao saber do conteúdo do trabalho escolar ao conversar com seus colegas no intervalo foi o adolescente Rodolfo. Ele era um garoto órfão que morava com uma tia e não tinha muitas referências na vida, a bagunça e as travessuras na escola eram o que dava sentido à sua vida. O único lugar aonde sentia que podia esquecer seus problemas de menino largado era na quadra de futsal durante o recreio. O seu estilo de jogo, porém, espelhava a sua situação de órfão meio abandonado, era extremamente individualista ao conduzir a bola e não ajudava muito os colegas de time na marcação, além disso só demonstrava algum ânimo quando se encontrava com a posse da bola. Por isso, apesar de possuir uma considerável habilidade futebolística sempre era escolhido por último, depois mesmo dos mais perebas da turma.
Ao chegar em casa naquele dia, teve vontade de fazer suas bagunças, jogar Playstation 25 e nem encostar nas coisas da escola, porém ele se lembrou daquele trabalho escolar chato e deu uma olhada no seu boletim digital bastante avermelhado, e pensou de maneira inédita que deveria se dedicar àquele trabalho. De maneira comodista, ele pensou em investigar a história da pequena praça do lado da sua casa, de fato até aquele dia ele não sabia nem o nome daquela praça aonde ele tinha vivido boa parte da sua infância. Resolveu começar pelo óbvio, se dirigindo até a praça para observar a placa que ele nunca tivera disposição de ler. A placa já estava bastante desgastada pelo decurso do tempo, mas ele conseguiu identificar o nome da praça, que resistia bravamente ao desgaste, enquanto os nomes dos administradores responsáveis pela praça na época da inauguração já estavam irreconhecíveis. Era a praça Valcir Farias Júnior.
Rodolfo só tinha aquele nome mas não tinha muitas pistas para começar a sua pesquisa, veio-lhe à mente a ideia de perguntar à pessoa mais velha da cidade, um dos poucos que eram vivos na época da inauguração, por obra do acaso ou do destino, o referido senhor passava pela praça com uma sacola de pães. Rodolfo explicou-lhe sobre a pesquisa e logo em seguida perguntou:
- O senhor sabe quem foi esse Valcir que dá nome a essa praça?
Aquela pergunta fez o velho abaixar a cabeça e olhar para o chão.
- Foi um jovem advogado que faleceu em um acidente aqui em Pains no ano de 2014, ou foi 2015 a não foi 2012, isso foi em 2012.
- O senhor pode me falar mais sobre isso?
- A maneira como ele morreu não importa, o que eu posso dizer é que o Valcir mudou para sempre o espírito de nossa cidade, a cidade se uniu para buscá-lo quando ele estava desaparecido de uma forma que nunca se tinha visto antes, parecia que todos fomos tomados por um espírito de luta e garra qua aqui não havia antes e eu posso dizer que ao longo da minha vida, depois do incidente com o Valcir, nossa cidade sempre se marcou pela União em torno de grandes causas e pela dedicação de todos à coletividade. Parece que de certa forma, o espírito do Valcir nos anima até hoje.
Rodolfo agora já muito interessado na história muito mais pelo personagem do que pela praça em si, queria descobrir mais sobre esse Valcir e todo esse impacto causado por ele na cidade de Pains.
- Aonde eu posso saber mais sobre o Valcir?
- Eu lembro do irmão dele que era um pouco mais jovem do que ele, Rodrigo se não me engano, não é ... Gustavo o nome dele. Não sei se ainda é vivo, mas você pode procurar a família dele, eles moravam em Contagem naquela época.
Rodolfo agradeceu e foi embora quase correndo, chegou em casa e começou a pesquisar na internet de seu iphone 80, não era muito difícil encontrar pessoas na internet, a era da tecnologia já havia substituído a era da privacidade há algum tempo. Rodolfo rapidamente localizou o número do vídeo fone atualizado dos familiares de Valcir em Contagem e como que tomado por uma vontade inédita de fazer alguma coisa produtiva tentou entrar em contato com algum familiar por vídeo fone, o aparelho chamou e rapidamente um senhor de uns 70 anos respondeu com algum estranhamento por não reconhecer aquele garoto que ligava:
- Quem é?
Rodolfo explicou quem era e qual era o motivo da ligação, o semblante do senhor mudou, agora ele era todo sorrisos, ao saber que o garoto ligava para pesquisar sobre a vida de seu tio. O Senhor explicou:
- Meu nome também é Valcir, assim como meu tio e meu avô. Eu sou filho do Gustavo, meu pai faleceu há alguns anos. Eu nasci depois da morte do meu tio, mas eu sei todas as histórias dele, meu pai me contou tudo, quase todo dia nós falávamos sobre ele, apesar da saudade que a família sempre sentiu, parecia que ele estava lá conosco quando meu pai me contava uma história do tio Valcir. Meu pai me contou a história de cada jogo que ele jogou ao lado meu tio no Chora Rita.
- Chora Rita?
- O Chora Rita era o time do tio Valcir e do meu pai na faculdade de direito da UFMG. Deixa eu te mostrar.
Valcir saiu da imagem e retornou 20 segundos depois com uma camisa emoldurada com várias mensagens e assinaturas.
- Essa é a camisa que eles usavam, pode-se dizer que essa foi a cereja do bolo da curta e bela vida do meu tio. o Chora Rita era tudo para ele, uma família, um símbolo de união e igualdade em um tempo desigual. Ser do Chora Rita era ser parte de algo maior do que os indivíduos que compunham o time. Olha esse vídeo do meu tio comandando o grito de guerra do Chora Rita.
O sobrinho dividiu a tela e mostrou um vídeo de seu tio à frente do Chora Rita demonstrando toda a sua garra e liderança. Valcir contou todas as histórias do Chora Rita, o primeiro título, os jogos jurídicos junto com os amigos, as inúmeras cervejas divididas com os companheiros de time. A História impressionou Rodolfo, que percebeu que Valcir amava a vida de maneira tão intensa, que viveu em poucos anos o que a maioria não vive em uma longa vida. O que de certa forma fazia Rodolfo ter um pouco de vergonha da vida sem sentido que ele levava.
O sobrinho mostrou também o discurso de orador que seu tio tinha proferido perante seus colegas do direito, professores e familiares. Nesse discurso Valcir demonstrava toda a sua inteligência e seu idealismo. Rodolfo percebeu que Valcir era um ser humano diferenciado que marcou muitas e muitas pessoas
Enfim, Rodolfo finalizou a ligação que havia durado por volta de duas horas, ele estava emocionado e bastante suado, ouvir aquelas histórias parecia ter ativado nele uma vontade de viver, de lutar, de não deixar nada ou ninguém ser um obstáculo para os objetivos nobres e pelos quais nós devemos lutar todos os dias.
O Espírito eterno de Valcir contagiou mais um...



"Penso que podemos aproveitar este momento de emoção, e dizer que estamos preparados para nos resguardar do vício do positivismo exacerbado. Não nos percamos no perigoso jogo de vaidades e petulância tão típicos do mundo jurídico. Sejamos imunes, aos conceitos e princípios frios, dissociados do verdadeiro Estado Democrático de Direito."
                                 Valcir ( trecho retirado do discurso de orador)

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O Beijo da Morte



Júlio César era considerado um grande conquistador de mulheres, quando chegava em uma festa os olhares femininos se dirigiam à sua figura quase que por uma espécie de magnetismo sexual. Para os seus rivais, aquilo era inexplicável, na verdade nem as moças conseguiam explicar a atração que elas sentiam por Júlio. Talvez fosse seu charme, seu porte, sua beleza, seu jeito malandro ou por um golpe de sorte ele teria nascido com um grau de emissão de feromônios sobre humano, nem ele sabia o que tinha de especial...
Porém Júlio abusava desse poder, com requintes de crueldade. Da mesma forma que seu xará romano aplicava a velha máxima romana "Veni, Vidi, Vici" para ganhos territoriais, o César pegador utilizava-na em referência às mulheres. Ele Vinha normalmente a festas ou a bares, que eram ambientes nos quais seus poderes eram ampliados pelo álcool. Após escolher um lugar de destaque na festa, normalmente perto do banheiro feminino, aonde muitas mulheres transitavam, assim se posicionando para Ver a todas e selecionar aquela que ele percebia ser mais suscetível a seus poderes. Finalmente, após escolher o seu alvo, ele Vencia sempre. Como o seu xará ele usava todos os seus poderes, todas as "legiões" à sua disposição, não tinha nem graça, a vitória era certa.
Júlio César não ligava muito para as mulheres já conquistadas, sempre almejava a próxima conquista, a próxima glória. Não atendia telefonemas e nem respondia mensagens das subjugadas, depois que ele conquistava era só terra arrasada, demorava algum tempo para as mulheres reconstruírem suas vidas arrasadas.
É fato que todos os impérios caem um dia, e o império de conquistas fáceis de Júlio César não teria fim diferente. Uma noite qualquer, Júlio César se encontrava em um de seus campos de batalha noturnos escolhendo avidamente, como general veterano que era, a conquista ideal para aquela noite, quando de repente seu olhar se cruzou com o de uma adversária à sua altura, uma clássica batalha Roma contra Cartago se desenrolaria, finalmente ele se deparava com uma destruidora de corações como ele. Porém a batalha não começou bem para Júlio César, a presença daquela mulher o fez sentir coisas que nunca havia sentido, suas mãos suavam muito, seu coração estava disparado, suas legiões estavam na defensiva, prontas para serem estraçalhadas por um ataque decisivo da cavalaria adversária. E tal ataque não demorou, assim que sua adversária se aproximou e percebeu o seu oponente acuado, ela desferiu o chamado beijo da morte, estrategicamente posicionado, como uma flecha, no canto da boca de Júlio César, indo embora logo em seguida recebendo congratulações das outras mulheres. 
As mulheres que assistiram incrédulas tal batalha, como que por um passe de mágica pararam de sentir a força dos poderes de Júlio César, que ao perder sua invencibilidade deixou o campo de batalha praguejando e dizendo que na próxima noite ele estaria de volta com a mesma força de antes, o que de fato não aconteceu, o medo daquela adversária eliminou a sua confiança e de fato destruiu seus poderes. Começavam, com sede de vingança, as invasões bárbaras.


sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Ciúme Maia



K'inich descia a montanha nas proximidades de Palenque, ele voltava do Grande Templo, aonde ele era o grande responsável pela manutenção do fantástico calendário maia. O seu conhecimento sobre as estrelas lhe dava  uma capacidade de interpretar o calendário e projetar o futuro. Tudo que K'inich fazia em relação ao calendário era às escondidas, pois ele não era da classe dos sacerdotes, mas devido ao seu talento para observar as estrelas, o sumo sacerdote utilizava-no como uma espécie de consultor secreto trabalhando no templo.
Naquele dia do ano de 648 D.C, quando K'inich chegou em casa, encontrou a sua companheira Zac-Kuk  com aquela cara de brava que homens de qualquer tempo e lugar conhecem. Apesar de entender tudo dos ciclos do calendário, os de sua mulher sempre lhe pegavam desprevenido.
- O que foi amor? algo de errado?
- Eu estava conversando com minhas amigas e elas me disseram que as virgens lá do templo ficam te dando o maior mole!
- Que isso amor! eu vou naquele templo só para trabalhar no calendário, se dependesse de mim eu  trabalharia aqui em casa, mas os sacerdotes fazem questão de manter meu trabalho escondido naquele templo, ninguém pode saber que eu entendo mais das estrelas do que eles.
- É que às vezes você demora muito para chegar, ai eu começo a pensar coisas...
- Fique tranquila, meu amor. Além de tudo os sacerdotes são muito sérios com essas coisas, as virgens estão lá para se concentrar para serem sacrificadas brevemente, elas não conversam com ninguém no templo.
Ao ouvir aquela frase, Zac-Kuk foi dominada pelo poder da fase anterior à renovação do seu ciclo feminino, com certeza se falássemos de um ciclo de seu calendário, K'inich poderia estar mais bem preparado para aquela súbita explosão.
- A É? ENTÃO QUER DIZER QUE SE OS SACERDOTES NÃO FOSSEM TÃO VIGILANTES, VOCÊ IRIA SE ESBALDAR?!!!!!!!!!!!!
- Não amor, não é nada disso que eu quis dizer...
- EU NÃO QUERO SABER! A PARTIR DE AMANHÃ VOCÊ NÃO TRABALHA MAIS NESSE MALDITO TEMPLO! AGORA SOU EU OU O CALENDÁRIO!
- Amor, é claro se você me fizer escolher, eu escolho você! mas me preocupa que o calendário não está terminado, eu parei no dia 21 de Dezembro de 2012. Me preocupa deixar o calendário assim aleatoriamente terminando em um dia qualquer, isso pode ser interpretado erroneamente no futuro...
- Acho que num tem problema, isso é uma coisa mais local, daqui a alguns meses ninguém nem vai lembrar desse calendário, agora vamos dormir...

sábado, 15 de dezembro de 2012

O engraxate



Mais uma vez a sua mente lhe indicava que ele já tinha estado naquela situação, tudo lhe era familiar, as pessoas, o que era dito por elas, as coisas à sua volta, nada era inédito. Ultimamente isso acontecia com uma frequência assustadora, às vezes ele sentia que já tinha vivido certo momento por várias vezes. Ele pensou em procurar ajuda...
Uma vez mais, chegou ao consultório do terapeuta com aquele tradicional sentimento de já ter conversado com aquela secretária em algum momento de sua vida. A explicação do terapeuta para seus problemas lhe pareceu repetitiva, parecia que ele já tinha ouvido aquela análise antes...
De novo pensava estar ficando maluco, todas as situações pareciam ser repetidas, com cada vez era menor distância entre um replay e o outro. Ele indagava se era ele o único a viver naquele mundo, a saltar de "deja vu" em "deja vu"...
Sua indagação poderia ser respondida tanto afirmativamente quanto negativamente. Os outros viviam a mesma repetição incessante de momentos, porém não percebiam isso. Não, ele não era o único a viver tal dilema, mas por outro lado, Sim, ele era o único que sofria com aquilo. Para os outros, imaginava ele, a "dejavuzite" era inerente à vida e eles não sabiam viver de outra forma.
Numa segunda-feira qualquer, ele caminhava para o trabalho com uma sensação de repetição incrível, parecia que nada à sua frente era visto pela primeira vez, as confusões em sua mente fizeram-no ficar um pouco tonto. Ele teve que se assentar na primeira cadeira disponível, no caso ele se assentou na cadeira de um engraxate que ali trabalhava há 40 anos:
- Vai engraxar senhor? Perguntou o homem sorridente.
Apesar de nunca ter sentado naquela cadeira, aquele momento não lhe parecia estranho
- Por favor.
O homem sorridente começou a engraxar o seu sapato com muita dedicação e carinho naquilo que fazia, seu sapato começava a brilhar mais e mais. Porém o efeito maior de tal engraxar não era sobre o seu sapato e sim sobre a sua mente, começara a refletir sobre aquele homem que engraxava um sapato após o outro, dia após dia, mês após mês, ano após ano e sempre com aquele sorriso e com a mesma dedicação. Devido à sua situação dramática, resolveu perguntar.
- O senhor faz isso há tanto tempo, é um trabalho repetitivo, o senhor não se cansa de viver a mesma coisa todos os dias?
Aquela pergunta não perturbou o sorriso do velho engraxate.
- Não senhor, eu sou muito feliz fazendo o que eu faço. O senhor não está certo quando diz que é a mesma coisa todos os dias, cada sapato que eu engraxo tem a sua história marcada nas ranhuras do calçado, eu tento imaginar sempre aonde aquele sapato esteve, os lugares que ele pisou, para mim cada sapato é um mundo... Parece repetitivo, mas dentro da minha cabeça não é.
As palavras do velho engraxate foram um abrir de olhos para o homem, se aquele homem conseguia transformar sapatos em mundos, ele também poderia começar a vencer seus "deja vus". Ao se levantar da cadeira e retomar a sua caminhada ele passou a olhar para as caras de cada transeunte e imaginar o que cada um estava vivendo naquele dia, o que pensavam, o que sentiam...
O ensinamento do sábio engraxate tocou-lhe de tal forma que a partir daquele dia cada situação e cada pessoa passaram a ser universos de infinitas variações e possibilidades, era a vitória da imaginação sobre a rotina.


quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Proselito



Proselito adorava discutir sobre tudo e sobre todos, é claro que discutir na concepção de Proselito era, na verdade, tentar impor a sua visão sobre o mundo a outras pessoas. Qualquer assunto era um possível teatro de guerra para as operações do exército de argumentos de Proselito. Ele entediava as pessoas na feira, tentando convencê-las que brócolis era melhor do que alface, no cabelereiro, certa vez seus argumentos em forma de deboche mirados contra o cliente sentado ao seu lado foram tão agressivos que a vítima preferiu ir para a casa com meio cabelo cortado. Seu proselitismo já fora diagnosticado por especialistas como patologia, é claro que tal diagnóstico foi devidamente contra argumentado por Proselito, que chateava todos os médicos com sua incessante defesa da medicina dita por ele, moderna, anti-diagnóstica. A última palavra sempre tinha que ser a dele.
Um belo dia (nada belo na opinião de Proselito) quando voltava da feira, aonde já tinha chateado algumas pessoas com suas ideias sobre a pequena utilidade do dinheiro e que para ele a economia deveria ser baseada no puro e simples escambo, se deparou com uma manifestação contra a violência, que foi prontamente ridicularizada por ele que acreditava que a violência era inata ao ser humano. Um dos manifestantes tomou as dores do grupo ofendido e foi tirar satisfações, no fim das contas a argumentação de Proselito foi tão descabida e enervante que ele conseguiu a proeza de arranjar uma briga com um pacifista. A polícia chegou ao local e prendeu os dois briguentos, tendo que ouvir no caminho para a delegacia o chatíssimo discurso de Proselito advogando a inexistência da polícia.
Por obra do destino, Proselito foi colocado para dividir a cela com um dos grandes traficantes da cidade, que já tinha sido preso muitas vezes, mas sempre era liberado porque não existiam  provas de seus fatos criminosos. Esse indivíduo tinha sido submetido a métodos de tortura que fariam inveja à Gestapo e mesmo assim ele nunca dobrou, nunca contou nada sobre suas atividades criminosas e nunca delatou ninguém.
Proselito não tinha nada para fazer naquele lugar e mesmo se tivesse não escolheria outra coisa para fazer além de aborrecer alguém com seus conceitos e opiniões sobre tudo. Depois de uma hora, o criminoso já estava com uma forte dor de cabeça e náusea. Ele começou a imaginar que Proselito era um policial disfarçado tentando aborrecê-lo até obter uma confissão, resistirei como sempre pensou o criminoso sem tanta convicção, pois nunca uma tortura tinha mexido tanto com a sua força de vontade como aquela que estava sendo administrada por Proselito no momento.
Outra hora se passou e finalmente o criminoso se curvou:
-Tá, eu confesso, chega por favor, eu fiz tudo aquilo, estou preparado para confessar todos os meus crimes e delatar meus comparsas, vocês venceram, chega!
Proselito respondeu prontamente com um brilho nos olhos:
-Confissão... hein, interessante. Acho que nunca opinei sobre as confissões, vamos lá então...


segunda-feira, 26 de novembro de 2012

A revolta dos personagens


Um aspirante a escritor luta para encontrar a ideia para um novo texto, até que a ideia lhe vem, ele escreve o texto, mais uma vez a história termina com um de seus personagens se dando mal, revelando todo o sadismo literário que o embalava. Porém dessa vez, um pouco antes de digitar a última palavra de seu texto, ele ouve uma voz do além:
- Ah para com isso cara! de novo...
O escritor começava a se indagar se estava ficando louco, ele começava a lembrar dos avisos de várias pessoas que lhe avisaram que essa mania de escrever não era coisa de gente certa da cabeça, ele tentou se convencer que a voz era obra da sua imaginação alimentada pelo avançar da noite e voltou a tentar digitar aquela última palavra. De maneira mais enfática a voz voltava:
-Não adianta me ignorar, eu sou parte de você!
O escritor já certo de sua loucura resolveu responder:
-Quem é você?
-Eu sou um de seus personagens, o Astolfo. O negócio é o seguinte, eu estou me comunicando com você porque eu e os outros personagens não estamos satisfeitos com os seus finais, nós sempre nos damos mal! Por que você tem que ser tão cruel?
O escritor não sabia o que responder, na verdade ele não sabia se deveria responder às perguntas daquela alucinação, mas no fundo a sua cabeça de escritor começou a realmente acreditar que estava conversando com um de seus personagens, além disso, ele imaginou que sendo alucinação ou não, seria uma boa ideia  digitar a conversa, se aproveitando para escrever um conto metalinguístico. Ele respondeu assertivamente:
-É o meu estilo, os finais felizes são politicamente corretos e isso não combina com os meus textos.
-HA HA HA, pois é bom você mudar o seu estilo, nós não iremos tolerar esse tratamento desumano!
-Ei peraí, eu sou o dono de vocês, eu criei todos vocês, eu imagino o final da história como bem entender! Além do mais, qual é o problema dos meus finais, vocês se ferram para eu fazer humor ou para levar o leitor a alguma reflexão sobre a vida, vocês são meus mensageiros.
- Esse que é o problema, escritorzinho que começou outro dia e acha que é Deus. Na minha história por exemplo, se você tivesse deixado eu pegar a loira seria bom para mim e para você também, a mulherada gosta de final feliz. A mulher do texto do despertador também não achou legal você ter feito a vida dela voltar à rotina, pura sacanagem. O Adriano nem parou de jogar bola e você já antecipou a morte dele! O Adriano fictício ficou tão deprimido que tá bebendo mais que o de verdade.
-E daí é como eu disse, eu crio vocês. Se não estiverem satisfeitos eu crio outros personagens.
-Não é assim que funciona, aqui no mundo dos personagens da sua cabeça nós podemos nos rebelar e fazer com que as ideias de novos personagens não lhe venham mais. Você notou como ultimamente você não tem conseguido criar personagens com tanta facilidade?
- Notei, mas isso é só uma fase, a inspiração vai voltar.
-Vai nessa...
-Eu vou provar para você que eu é que mando nessa merda!
-Prova então!
-Se eu desligar esse computador e parar de escrever esse texto da revolta dos personagens eu provo que eu estou no controle!
-Ah vai pra
Antes do personagem terminar seu insulto, o escritor puxou a tomada do computador, ele pensou que era melhor aquele texto nunca ser publicado, ele mostrava um escritor acuado pelas suas criações. Assim como Zeus puniu o Titã Prometeu, ele pensaria em uma maneira sádica e cruel para punir seus personagens. Entretanto, o "Zeus" literário não teria vida fácil com esses Titãs, pois descobriu no dia seguinte o texto proibido à mostra em seu blog, o equivalente a uma invasão ao Monte Olimpo.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Negócios, Negócios, amigos à parte (nº2)


George W. Bush contempla uma carabina automática M4A1 em seu rancho no Texas, pensando nos rios de dinheiro que ele havia ganhado dos fabricantes daquela belezinha, graças aos seus grandes esforços de guerra. De repente ele escuta uma voz:
-Georgie como que você está, meu melhor amigo!
-O que isso uma voz do além, quem acredita nesse tipo de coisa são os democratas!
-Sou eu Bush, o cara que alavancou sua carreira política.
-Eu não acredito! Bin Laden, será possível que é você, o que está fazendo aqui?
-A mulecada tá foda, meus mártires de guerra estão cheios de virgens a seu dispor e não querem me emprestar nenhuma. Eu como nunca fiz aquelas coisas diretamente, não ganhei nenhumazinha, então eu pensei em te visitar meu amigão.
-Nossa Bin, que saudade que eu tenho do nosso tempo dividindo os noticiários, minha popularidade lá em cima com as guerras. Aquela ideia sua do 11 de Setembro foi coisa de mestre, eu virei um grande herói, foi bom enquanto durou...
-Sem falar na grana que nós faturamos no mercado de ações naquele ano...
-O problema foi depois, acho que nós viciamos naquele jogo de gato e rato, o exército descobria aonde você estava, eu tentava despistá-los ganhando tempo para você fugir, e ai quando bombardeavamos a caverna você já tinha fugido, e no dia seguinte começava tudo de novo, bons tempos Osaminha...
-Quem não gostou daqueles dias foi o Saddam, eu conversei com ele outro dia e o cara tá puto com você, ele pensou que era da turma!
-O Saddam é um otário, nunca gostei dele, ele era amigo de papai. Quando eu era mais novo ele me trouxe uma AK-47 toda quebrada de presente de aniversário, que falta de consideração, nem para me trazer uma amostra daquela arma química que usou contra os curdos. Eu jurei que teria a minha vingança.
-A deixa pra lá, Georgie, esquece o Saddam, vamos falar de coisa boa, como está essa vida de aposentado texano?
-Uma bosta! Passo os dias aqui no rancho pensando naqueles tempos dourados que eu e você tivemos, minha vida não faz sentido sem você aqui.Culpa daquele democrata safado do Obama, qual é o problema desses democratas? parece que não gostam de guerras! que caras estranhos, não sei qual será o futuro do planeta com esses pacifistas no poder.Que que eu faço Osaminha? não consigo viver sem você do meu lado!
-Eu tenho uma ideia cara, vem pra cá!
-Como assim?
-Aqui nós podemos sentar no sofá e assistir às guerras de todo o planeta com várias câmeras e ângulos,  é um serviço de pay per view que eles tem aqui, O Hitler quando veio pra cá iniciou esse canal de guerras porque ele estava muito entediado, hoje é um sucesso entre os megalomaníacos falecidos. Vai ser como aquele Super Bowl que nós assistimos juntos em 2002.
Bush não hesitou em utilizar em si mesmo todo o poder mortífero da carabina que antes tinha lhe dado tantas alegrias. Porém, em cima da mesa ensanguentada, ao lado de alguns cartuchos calibre 5.56mm, estava um vidro de remédio contra a esquizofrenia que assolava a mente de Bush desde a morte de seu querido amigo.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A Contradição da Lapa



Pitor Vinheiro era um boêmio típico da Lapa nos anos 30, era a época dourada da malandragem carioca. Pitor amava a noite na Lapa com toda a sua magia que fazia as noites serem memoráveis. Para Vinheiro, não havia nada mais especial do que as mulheres da Lapa, principalmente as profissionais, “Profissão mais antiga do mundo com merecimento” pensava o nosso boêmio. Para ele, essas nobres profissionais eram como anjos da noite, anjos decaídos que proporcionavam uma hora que seja de luxúria e prazer aos corpos mais necessitados, e para Vinheiro os Oráculos sexuais erguidos na Lapa providenciavam não só um tratamento terreno, mais principalmente uma cura espiritual para aqueles que não se atraiam muito pelas ditas “mulheres de estirpe” de Botafogo e do Flamengo. Os homens que adentravam a Lapa buscando satisfazer seus impulsos carnais, acabavam se deparando com uma curiosa situação: criavam fortes vínculos emocionais com aquelas mulheres, inclusive por vezes deixando de se entregar ao prazer para passar noites conversando sobre suas frustrações e problemas naquele mundo estranho ao sul do bairro da Glória.
Vinheiro passava por uma grande crise de identidade naquele ano de 1937, após a intentona comunista de 1935, o governo de Getúlio Vargas tinha intensificado a sua repressão sobre os bairros populares como a Lapa, aonde muitos jovens intelectuais comunistas passavam as suas noites a discutir o futuro do Brasil, sem deixar de aproveitar as delícias da Lapa, é claro. Acontece que Pitor Vinheiro era um grande tenente de Plínio Salgado, o líder do integralismo, movimento que tinha como lema o mote “Deus, Patría e Família”, e por isso Vinheiro havia jurado lutar contra os comunistas até a morte se necessário fosse. As dúvidas na cabeça de Vinheiro se avolumavam cada vez mais, além de não poder empreender a caça aos comunistas ordenada por Getúlio e por seu padrinho Plínio Salgado, não podia também revelar a sua identidade noturna. Ao longo do dia, ele participava de manifestações moralistas defendendo a virgindade das moças, e à noite era pura esbórnia na Lapa.
Com o aumento da repressão, Vinheiro começou a perceber que o problema não era ele e sim a sociedade. Em sua cabeça era plenamente possível sintetizar o seu dia e a sua noite, o seu integralismo ferrenho com a sua lugubridade noturna. Para ele, as escapadas noturnas e os encontros de corpo e alma com as moças da Lapa eram fundamentais para que no outro dia ele tivesse o equilíbrio para defender seus ideais. Por mais contraditório que isso possa parecer, para Pitor Vinheiro o alicerce da sociedade brasileira estava em lugares como a Lapa, aonde os homens descarregavam todas as suas frustrações e recarregavam as suas baterias. Para ele, o mote “Deus, Patría e Família” andava lado a lado com as palavras “Vem cá, minha fogosa!”.
O único erro de Vinheiro foi tentar defender essa síntese  em panfletos que resolveu distribuir por toda a Cidade, contra os conselhos de amigos mais próximos, que pensavam que ele tinha ficado completamente maluco. Ele chegou até a pedir uma audiência, negada, com o Presidente Vargas para expor as suas visões políticas que defendiam a valorização da boêmia como sustentáculo da sociedade. Vinheiro não deixava de ter uma dose de razão em seus pleitos, porém a sociedade nunca os aceitaria como válidos e não demorou para os policiais do Estado Novo identificarem nosso integralista de carteirinha como um subversivo comunista. Vinheiro foi preso e passou os anos na cadeia a pensar em como abrir o seu próprio prostíbulo, “já que não me entendem fora da Lapa, o jeito é ficar por lá...”, pensou Pitor Vinheiro com um ar de gênio mal compreendido.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

A Segunda Morte



A equipe de reportagem chegava em um bairro humilde do Rio de Janeiro, chegavam mais especificamente à Vila Cruzeiro, com o objetivo de entrevistar um ídolo do passado. A equipe não entendia muito bem o porquê daquela entrevista, afinal de contas nunca tinham ouvido falar daquele jogador, atletas que lhes eram familiares de 30 anos atrás eram o famosíssimo Ronaldo Fenômeno, Ronaldinho Gaúcho, o já falecido Romário, entre outros. O chefe de redação, para justificar a pauta, simplesmente havia dito a eles que esse era um jogador que ele lembrava da sua infância e que daria uma grande reportagem de capa.
Buscaram dentro das ruelas daquela comunidade o endereço, às vezes perguntavam na rua, ninguém sabia aonde a pessoa procurada morava. Eles já estavam quase desistindo da procura depois de três horas de buscas sem resultado, foi quando resolveram parar em um buteco para ver se o dono sabia aonde encontrar o entrevistado, e lá chegando nem notaram um senhor negro, alto porém um pouco encurvado, a pança de cerveja um pouco para fora da camisa, sentado na única mesa ocupada do bar, o relógio acusava 10 horas da manhã.
Perguntaram ao dono:
- O senhor sabe aonde eu encontro o Senhor Adriano, um que foi jogador de futebol há 30 anos?
- Olha ele ali rapaiz! ele toma cerveja aqui todo dia, é meu freguês nº 1.
Eles olharam para trás e visualizaram o senhor Adriano, que na visão da equipe parecia que não vinha se alimentando muito bem, tirando é claro a cevada diária. Eles se aproximaram cuidadosamente, os olhos de Adriano pareciam brilhar quando ele viu que um deles trazia uma câmera fotográfica:
-Você é o Senhor Adriano que jogou na seleção brasileira nos anos 2000?
Adriano já não estava tão acostumado a ser tratado com essa reverência toda, era um Imperador decaído, porém parece que a presença da equipe de reportagem fez com que a Coroa voltasse à sua cabeça.
- Sou eu mesmo, meu filho, eu quando partia pra cima da zaga e chutava forte com a perna esquerda não tinha goleiro que pegava um chute meu.
A essa altura Adriano se levantava em uma tentativa de demonstrar as suas antigas habilidades futebolísticas, mas os repórteres estavam mais interessados em saber o que interrompeu a sua grande carreira.
-Mas por que você decidiu encerrar a sua carreira aos 30 anos quando ainda tinha idade para demonstrar grande futebol?
Aquela pergunta trouxe Adriano de volta à realidade, o brilho nos seus olhos foi embora, ele agora começava a se lembrar porque ele odiava a imprensa, entretanto ele resolveu ser sincero com um jornalista pela primeira vez na vida, afinal de contas não tinha nada a perder.
- Cara eu morei aqui na Vila Cruzeiro quase toda a minha vida, eu amo isso aqui, aqui eu me sinto em casa e eu amava jogar futebol. Todo o resto eu não gostava: treinos, viagens, concentrações, falar com a imprensa, contratos, publicidade... Eu só queria jogar futebol e curtir com meus amigos aqui da Vila Cruzeiro, então comecei a beber muito para fugir dessa rotina chata de jogador profissional e quando eu comecei a beber muito, meu corpo deixou de ter condições de fazer o que eu mais amava.
Os olhos de Adriano já estavam marejados a essa altura, o repórter engoliu seco e continuou as perguntas:
- E como foi a sua vida nesses 30 anos depois de ter parado de jogar futebol?
Adriano lutava contra a sua vontade de evitar aquela pergunta.
- Aos poucos as pessoas se esquecem de você, o dinheiro vai embora, as festas, as mulheres, mas o pior mesmo é que até hoje eu sonho com os estádios lotados, sonho com o Maracanã lotado e eu correndo para a torcida depois de um gol, isso é o pior, é o que sinto mais falta...
Adriano respirou fundo antes de proferir suas próximas palavras:
- É como se eu tivesse morrido uma vez e ainda tenho que morrer pela segunda vez.
A entrevista seguiu com Adriano sendo realmente sincero em todas as perguntas, o jornalista saiu feliz da vida, certo que ganharia algum prêmio por aquela reportagem e Adriano seguiu para a sua casa já bastante embriagado, uma vez que a cada pergunta do jornalista, ele tinha que tomar um copo de cerveja para falar a verdade.
Ele chegou em casa e alavancado pelas memórias reacesas pela entrevista começou a se imaginar fazendo um gol em pleno Maracanã, a esse ponto ele narrava o próprio gol, porém a emoção foi muito forte, seu coração não aguentou a quase visão que ele teve do Maracanã celebrando seu gol. Faleceu o Imperador, era a sua Segunda Morte...



quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Negócios, Negócios, amigos à parte (nº1)


Nikita Kruschev e John Kennedy conversam ao telefone vermelho:

Nikita: E essa crise dos mísseis, que porra foi essa hein John? quase iniciamos o apocalipse...
John: Porra Niki, eu não entendi você nessa, achei que nós eramos amigos.
Nikita: Foi mal, eu tava meio puto com você depois que você não quis ir no meu churrasco lá em Cuba, se você fosse no churras, o Fidel tava animando até de dar uma esticadinha na festa e terminar lá em Guantanamo.
John: Vocês são foda! eu tenho eleição em breve não posso ser visto andando com vocês, imagina, não seria nada bom para a minha reputação caro Niki.
Nikita: Velho, mas o Che já tá putaço com você porque você não foi no aniversário dele na Bolívia ano passado...
John: isso foi paia mesmo, o Che é meu amigo mas ele é mais bonito do que eu, então quando eu saio na night com ele num sobra nada pro Johnny aqui, a Marylin Monroe já ta querendo que eu apresente o Che pra ela...
Nikita: Mas mudando de assunto, Johnny boy quando você virá me visitar aqui na Rússia?
John: to fora, ai é frio pra caralho!
Nikita: que frio rapaiz, o pessoal do politburo tem uma casa de verão na Crimeia e não sei se você sabe mas as Ucranianas tem uma tara em mostrar os seios em público! Acho que é uma habilidade que elas ainda desenvolverão no futuro, temos que começar a incentiva-las!
John: Não vou! até hoje você não me mandou minha carteirinha de membro honorário do Partido Comunista Soviético, poxa, toda aquela cerimônia secreta e nada da minha carteirinha confidencial...
Nikita: Johnny você é meu amigo, mas você é muito sensível, depois reclama quando eu tento explodir o seu país...
Nikita desliga o telefone vermelho e diz para um subalterno:
-Peça um ataque nuclear a Washington, só assim mesmo para fazer o Johnny passar o Verão conosco na Crimeia...

terça-feira, 6 de novembro de 2012

O despertador


O despertador tocava “Another day” de Paul McCartney, uma mulher acordava para mais um dia de trabalho, ela levantou, olhou para o sua cama de casal, ela ainda não havia se acostumado a ocupar todo o espaço da cama, ainda lamentando o vazio de um amor que não mais preenchia o outro lado da cama. Sua rotina já era como um relógio suíço, era como se tudo que ela fazia ao longo do dia acontecesse automaticamente, parecia que corpo e mente não estavam em uníssono, e mesmo sua mente era dividida por uma guerra mortal entre sua parte consciente e seu subconsciente. O corpo cuidava de todo o dia se levantar, tomar banho, se vestir, beber muito café e trabalhar, sempre aproveitando os intervalos para ingerir doses cavalares de café, que permitiam a ela seguir em frente naquela eterna repetição. A sua mente, por outro lado, se via totalmente desconectada da realidade, sonhos em plena luz do dia, pensamentos se embaralhavam com ideias e desejos, parecia que tudo a fazia lembrar do seu amor perdido, às vezes ela acordava de seus sonhos e percebia que havia feito relatórios e mais relatórios sem sequer ter percebido que os fazia.
Porém naquele dia, que até então não se diferenciava muito dos 556 dias úteis anteriores, seus colegas que sempre a convidavam para os encontros após o serviço, mas sempre ouvindo o costumeiro “não, eu tenho que organizar algumas coisas lá em casa ou “hoje não dá, têm visitas se hospedando lá em casa”, sempre as mesmas mentiras que faziam-na  se esconder do contato humano, pois naquele dia, talvez por um reflexo involuntário causado pela ingestão excessiva de café, as palavras que saíram de sua boca foram as inacreditáveis: “Vamos sim”. Nem ela entendeu porque concordou em ir naquele happy hour, talvez ela tenha sido influenciada pela leitura de seu  horóscopo um pouco mais cedo, ou o mais provável, talvez o seu subconsciente queria evitar o encontro com o síndico que iria lhe espezinhar falando do condomínio que estava atrasado há alguns meses. “Nessa o meu subconsciente mandou bem”, pensou o seu consciente.
Algumas horas e cervejas mais tarde, o seu semblante já não era mais o mesmo, com certeza naquelas horas a sua carência de sociabilidade tinha sido satisfeita, a própria quebra da rotina mecânica que ela vinha levando tinha mais poder sobre ela do que o álcool em si. Mais horas passaram e a turma terminou a noite em uma boate movimentada, a mulher agora parecia muito mais uma máquina de dança do que aquele artefato de chatice que ela havia sido nos últimos tempos e tamanha destreza na pista de dança não deixaria de atrair os mais variados olhares masculinos. Foi então que o seu olhar embriagado cruzou com outro na mesma situação e pelo poder deste lubrificante social, que é o nosso querido álcool, rapidamente olhar virou conversa, que virou beijos, que em pouco tempo se transformou no preenchimento daquele vazio na sua cama. O sexo, para quem, além de não tê-lo há tanto tempo, vivia uma vida monótona, foi uma descarga de emoções que fez sua mente se unir ao seu corpo, enquanto este se unia ao corpo de seu parceiro. Por um breve momento, o subconsciente e o consciente cessaram as hostilidades em um armistício sexual e trataram de curtir cada qual à sua maneira aquele momento delicioso.
No dia seguinte, ela venceu o despertador por alguns minutos, seu consciente não acreditava que alguém ainda estaria ao seu lado, porém seu subconsciente já imaginava até um relacionamento. A sua mão a tatear procurando o parceiro, tratou de jogar por terra as pretensões do subconsciente, o mesmo vazio de antes lá estava. O despertador tocava “Another day” de Paul McCartney...

Beirando a realidade



Astolfo sonhava um dia conversar com uma mulher cara a cara, ter um encontro de verdade, será que seria pedir demais meu bom Deus, pensava Astolfo. Naquela manha, o nosso herói se encontrava em um cybercafé checando o que havia de novo em seu facebook, não havia muita coisa, pelo menos nada que fosse aproximar nosso querido Astolfo de realizar o seu desejo.
Algum tempo depois, quando Astolfo estava se informando sobre os novíssimos lançamentos da Indústria de jogos, inclusive um jogo incrível que permitia ao jogador encarnar uma pessoa comum que vai a cybercafés para se plugar na Internet, Astolfo teve uma espécie de Epifania, “quem sabe eu não tento entrar num site de relacionamentos para resolver meu problema?” Pesquisou com destreza no google previamente aberto e que pulsava com pesquisas sobre os novos aplicativos que ele precisaria para rodar os seus novos jogos. Entrou no primeiro site que viu na imensa relação que apareceu no seu console, fez um rápido perfil, sendo honesto em alguns pontos em outros nem tanto, como no quesito “Enumere a quantidade de relacionamentos anteriores”, no qual ele teve que indicar o astronômico, porém fantasioso número de três relacionamentos. Nosso galã virtual não nutria a maior das esperanças nessa sua tentativa desesperada de reverter a sua sorte, mas não tinha muito a perder, então enviou o perfil.
Para a sua surpresa, Astolfo foi incomodado bem no meio de uma movimentada sessão de um jogo de tiros online. A mensagem tinha os dizeres: “Seu perfil foi recebido por Megan Vox que deseja iniciar uma conversa com você”. O coração de nosso Don Juan virtual acelerou, suas mãos começaram a suar, porém logo após ele foi tomado de um pessimismo incontrolável, pensando que deveria ser uma mulher das mais feias disponíveis no site, tomado foi ele também de uma espécie de medo do real, “e agora o que eu faço?” pensou ele. A sua sorte estava lançada, então o mínimo que ele poderia fazer era checar a foto e tentar se engajar em papo virtual, já começava a se arrepender de ter saído da sua zona de conforto.
Astolfo entrou na conversa com a mulher, seu coração quase saindo pela boca, o procedimento daquele site ditava que a pessoa deveria entrar na conversa com uma webcam transmitindo a imagem ao vivo, pois quando  Astolfo viu a sua pretendente na Webcam ele não acreditou, ela era uma loira maravilhosa de olhos azuis que ele só via em seriados de TV, já começou a se imaginar como o Leonard de um das suas séries favoritas “The Big Bang Theory”, um cara parecido com ele que conseguiu namorar uma loira maravilhosa, a Penny. Ele até conseguiu demonstrar uma considerável habilidade no papo virtual, por algum motivo parecia que o fato de estar por detrás daquela tela o transformava em um galanteador nato que fazia e acontecia, muitas das coisas ditas por ele não eram verdadeiras, mas a ausência da sua interlocutora no mesmo ambiente que ele lhe dava muita confiança. Foi um verdadeiro conto de fadas cibernético, até que a sua interlocutora falou que teria que ir ao banheiro.
No mesmo instante nosso Astolfo viu uma linda mulher loira se levantar no mesmo cybercafé que ele estava. Como um raio, a conclusão atingiu o centro do seu cérebro, é ela! Rapidamente aquele ar de altivez e confiança se esvaiu, a sudorese voltou, seu coração agora parecia bater em uma arritmia louca, Astolfo sequer hesitou, pegou seu computador, deixou uma nota de 50 reais com a garçonete sem sequer exigir o troco e saiu correndo pela porta do estabelecimento. Saiu resmungando, reclamando da realidade, que era para ele incontrolável e não lhe fazia bem. A realidade é muito tangível, pensou Astolfo...


Tiago Guerra Oliveira