sábado, 15 de dezembro de 2012

O engraxate



Mais uma vez a sua mente lhe indicava que ele já tinha estado naquela situação, tudo lhe era familiar, as pessoas, o que era dito por elas, as coisas à sua volta, nada era inédito. Ultimamente isso acontecia com uma frequência assustadora, às vezes ele sentia que já tinha vivido certo momento por várias vezes. Ele pensou em procurar ajuda...
Uma vez mais, chegou ao consultório do terapeuta com aquele tradicional sentimento de já ter conversado com aquela secretária em algum momento de sua vida. A explicação do terapeuta para seus problemas lhe pareceu repetitiva, parecia que ele já tinha ouvido aquela análise antes...
De novo pensava estar ficando maluco, todas as situações pareciam ser repetidas, com cada vez era menor distância entre um replay e o outro. Ele indagava se era ele o único a viver naquele mundo, a saltar de "deja vu" em "deja vu"...
Sua indagação poderia ser respondida tanto afirmativamente quanto negativamente. Os outros viviam a mesma repetição incessante de momentos, porém não percebiam isso. Não, ele não era o único a viver tal dilema, mas por outro lado, Sim, ele era o único que sofria com aquilo. Para os outros, imaginava ele, a "dejavuzite" era inerente à vida e eles não sabiam viver de outra forma.
Numa segunda-feira qualquer, ele caminhava para o trabalho com uma sensação de repetição incrível, parecia que nada à sua frente era visto pela primeira vez, as confusões em sua mente fizeram-no ficar um pouco tonto. Ele teve que se assentar na primeira cadeira disponível, no caso ele se assentou na cadeira de um engraxate que ali trabalhava há 40 anos:
- Vai engraxar senhor? Perguntou o homem sorridente.
Apesar de nunca ter sentado naquela cadeira, aquele momento não lhe parecia estranho
- Por favor.
O homem sorridente começou a engraxar o seu sapato com muita dedicação e carinho naquilo que fazia, seu sapato começava a brilhar mais e mais. Porém o efeito maior de tal engraxar não era sobre o seu sapato e sim sobre a sua mente, começara a refletir sobre aquele homem que engraxava um sapato após o outro, dia após dia, mês após mês, ano após ano e sempre com aquele sorriso e com a mesma dedicação. Devido à sua situação dramática, resolveu perguntar.
- O senhor faz isso há tanto tempo, é um trabalho repetitivo, o senhor não se cansa de viver a mesma coisa todos os dias?
Aquela pergunta não perturbou o sorriso do velho engraxate.
- Não senhor, eu sou muito feliz fazendo o que eu faço. O senhor não está certo quando diz que é a mesma coisa todos os dias, cada sapato que eu engraxo tem a sua história marcada nas ranhuras do calçado, eu tento imaginar sempre aonde aquele sapato esteve, os lugares que ele pisou, para mim cada sapato é um mundo... Parece repetitivo, mas dentro da minha cabeça não é.
As palavras do velho engraxate foram um abrir de olhos para o homem, se aquele homem conseguia transformar sapatos em mundos, ele também poderia começar a vencer seus "deja vus". Ao se levantar da cadeira e retomar a sua caminhada ele passou a olhar para as caras de cada transeunte e imaginar o que cada um estava vivendo naquele dia, o que pensavam, o que sentiam...
O ensinamento do sábio engraxate tocou-lhe de tal forma que a partir daquele dia cada situação e cada pessoa passaram a ser universos de infinitas variações e possibilidades, era a vitória da imaginação sobre a rotina.


2 comentários:

  1. Além das implicações relativas à nossa percepção do cotidiano (que pode tanto ser visto como monótono e entediante, como com um ambiente imaginativo fértil e curioso), me fascina (e não é a primeira vez) a capacidade do Tiago de compor personagens de forte cunho simbólico, que brinca com nossos preconceitos e visões pré determinadas. A figura do sábio engraxate é muito interessante porque evidencia uma inteligência não tradicional. Costumamos associar a inteligência às áreas clássicas de alto grau de abstração: matemática, física, etc. Mas veja como a experiência de vida de um homem que titubeia em relação a todos os estereótipos culturalmente desejáveis possíveis promove uma forma de lidar com a VIDA de forma mais feliz que outros indivíduos até potencialmente gênios "clássicos".
    Ótimo texto.

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  2. Obrigado pelas palavras Silvio! comentários desse nível me motivam a escrever mais ainda, vlw!

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